domingo, 22 de março de 2009

Karma e causalidade

Por Roger Taussig Soares (professor da FTU – Faculdade de Teologia Umbandista)

A idéia de "karma" está presente em virtualmente todas as escolas umbandistas e se relaciona com a doutrina da reencarnação e com as regras que definem o processo de evolução espiritual. Como é de se esperar, diante da diversidade intrínseca ao movimento umbandista encontramos também uma variedade de acepções relacionadas à questão do karma. Tentaremos nas próximas linhas discutir essas interpretações, localizar as influências de outras doutrinas e propor, ao final, uma visão mais concernente com as teorias científicas e filosóficas mais atuais.

Karma como prêmio e castigo

Uma das formas mais difundidas de compreensão do karma está ligada à idéia de que teríamos uma história espiritual na qual se registrariam todas as nossas ações. Caso realizemos boas ações, elas reverterão em prêmios, como uma vida próspera e feliz. Por outro lado, quando agimos de modo negativo, precipitamos sobre nós a execução da lei divina que se manifesta em variadas formas de castigos. Muitas religiões, reencarnacionistas ou não, aderem a esse conceito e ainda acrescentam a possibilidade de barganha com o Sagrado na expectativa de atrair seus favores, por meio de promessas, penitências ou pela simples resignação diante do infortúnio. A influência católica é claramente perceptível nessa situação.

É possível esmiuçar essa visão se a levarmos ao ponto do entendimento sobre o que são o Bem e o Mal. Podemos entender esses pequenos prêmios e castigos do karma como instâncias menores, ou seja, minúsculos bens e males, de um grande Bem e um grande Mal, ambos finais, eternos e traduzidos na teologia cristã na forma do Paraíso e do Inferno. Ainda que a teologia cristã não seja totalmente maniqueísta porque não ensina que o Bem e o Mal sejam princípios primordiais, eternos e coexistentes, mas aponte para uma origem do Mal na queda dos anjos, podemos entender que acaba por atribuir um caráter ontológico de realidade do Mal quando ele persiste indefinidamente na forma de danação eterna, após o Juízo Final. Cabe então questionar aos umbandistas se acreditam em um Bem eterno e um Mal igualmente eterno e se o karma acaba por ser a luta entre esses dois opostos que estariam dentro ou fora de nós.

Uma visão diferente é a de que o Mal não existe por si mesmo, mas corresponde a uma falta, uma ausência do Bem. Segundo essa percepção, o mal é a ignorância decorrente do distanciamento da realidade espiritual sempre-existente. Para os sufis, o mal começa com a ilusão da existência de um eu (nafs) e com a percepção distorcida de que a ausência de Deus é possível. Como correção desse distúrbio, o sufismo ensina seus seguidores a encontrarem a Deus na Sua presença e na Sua ausência.

Nota-se que por essa visão o Mal teve origem com o surgimento da ignorância e terá, necessariamente, um fim com a realização da espiritualização plena. Também o mal estaria mais diretamente ligado ou inerente à existência da matéria que se caracteriza pela transitoriedade e pela impermanência. Tudo que é material tem começo e tem fim, como o mal está ligado à perda da consciência espiritual decorrente do mergulho do espírito na matéria, uma vez que recuperarmos a plena consciência da Realidade-Una, ao mesmo tempo transcendente e imanente, será desfeita a ilusão do mal.

Tal visão negativa da existência do Mal se completa com a percepção da relatividade dos conceitos de Bem e de Mal. Várias doutrinas demonstram a relatividade dos juízos de valores que fazemos e que nos utilizamos para conhecer o mundo. Como exemplo, percebemos que só existe o escuro porque existe o claro e vice-versa, por serem conceitos interdependentes. Da mesma maneira, só existe o Bem porque existe Mal. Além disso, a interpretação do que seja bom ou ruim varia entre as pessoas e ainda na mesma pessoa ao longo do tempo.

Diante desse relativismo, podemos concluir que se a evolução aponta para um caminho cada vez mais pleno de espiritualidade e do Bem, em um dado momento o Mal diminuirá tanto que se extinguirá. Quando isso acontecer, também se extinguirá o Bem pois não haverá mais termo de comparação. Essa filosofia está incluída em algumas visões da teleologia umbandista que associam o fim do processo evolutivo ao retorno para o estado da pura consciência espiritual cósmica, ou Reino Virginal. Nessa situação, não será mais necessário o mundo material para a evolução que já terá atingido seu propósito e, portanto, o final da escada evolutiva coincidirá com o fim do universo.

Descartes, Hume, Darwin e karma

O espiritualismo e ocultismo europeus, em linhas gerais, receberam ou importaram várias noções orientais e as adaptaram às suas doutrinas. No processo de tradução verificamos as influências da cultura européia na apropriação de conceitos. Entre elas, destacamos as idéias de linearidade, de causalidade e de evolução.

O pensamento europeu foi bastante determinado pelas luzes do Esclarecimento ou Iluminismo que apostavam na razão como meio para superação dos conflitos humanos e como meta do processo evolutivo. Na expectativa de tornar a espiritualidade mais "científica", observou-se especialmente por parte do espiritismo kardecista, uma valorização do pensamento racionalista cartesiano e das doutrinas de Darwin e Hume como forma de explicar a evolução dos espíritos.

A introjeção desses paradigmas filosóficos-científicos, foi realizada com o intuito de dar maior credibilidade para essas religiões nascentes. Elas seriam respeitáveis porque não seriam apenas religiões, mas também filosofia e ciência. Em contrapartida, aquelas práticas religiosas que davam espaço para a espontaneidade e para a emoção, como as religiões de transe tipicamente africanas e indígenas, seriam consideradas( como o foram no Brasil) formas de baixo espiritismo.

O cartesianismo apresenta-se na doutrina do karma quando se pensa nesse processo utilizando o pensamento de linearidade. Nessa perspectiva, o karma é como um fio ou uma cadeia de eventos que se sucedem uma após o outro, de modo que tudo o que acontece pode ser explicado karmicamente como decorrente de uma ação pregressa nessa vida ou em outras.

Figura 1: Linearidade no encademento de causas e efeitos


Além desse encadeamento de ações tipicamente cartesianas, observa-se ainda uma tendência newtoniana ao se referir à "lei do karma" coma uma lei de "ação e reação" nos moldes da física mecânica de Isaac Newton. Observa-se que a linearidade e o mecanicismo dessa forma de compreensão do karma tendem a submeter o ser humano a um determinismo que se contrapõe ao princípio de livre-arbítrio da espiritualidade. Em conseqüência desse mecanismo tão preciso e determinista somos transformados em presas do destino.

Também a idéia de causalidade de Hume parece estar internalizada nessa doutrina de karma como "a lei de causa e efeito". Os eventos seguem um curso cronológico e é a disposição entre antecedente e consequente que estabelece o nexo causal de necessidade. Notamos o peso desses conceitos na forma como muitos tratam dos problemas experimentados na prática por aqueles que buscam auxílio espiritual. Seguindo essa tendência de causalidade, qualquer infortúnio presente deve ser explicado por uma má-ação do passado. De modo semelhante à "teoria do trauma" de Sigmund Freud, muitos espiritualistas procuram a causa dos problemas presentes em algum evento traumático ou catastrófico do passado, seja nessa ou em outras vidas. As terapias das vidas e vivências passadas adotam essa postura. Assim como os psicanalistas freudianos não procuram mais um único trauma no passado para explicar a neurose presente de seus pacientes, também não devemos encarar o karma desse modo linear.

Por fim, outro cientista enaltecido por determinados círculos espiritualistas foi Charles Darwin cuja teoria da evolução das espécies serviu de inspiração para a interpretação do karma como uma lei evolucionista. Contudo, é necessário perceber que na teoria darwinista não existe um propósito pré-estabelecido para as espécies. Um dinossauro não surgiu no planeta com o intuito de depois dar surgimento a uma galinha. O que acontece é que pela seleção natural, sobrevivem os mais adaptados ao meio e, a não ser que o meio seja manipulado para levar uma espécie a se desenvolver em outra(algo difícil de conceber), não temos aqui a evolução do mesmo modo que aquela entendida pela espiritualidade. Além disso, a sobrevivência do mais adaptado não significa a do melhor, mas simplesmente daquele que está mais em sintonia com o meio. Caso mantivéssemos essa posição, o que esperaríamos do mundo diante de tanta corrupção e do capitalismo desenfreado?

Aprofundando a causalidade

Como a teleologia umbandista certifica a existência de um propósito para o universo e esse propósito ou finalidade está ligado à evolução, não abandonamos a causalidade mas precisamos entender melhor o processo.

Em primeiro lugar, ao invés de pensar que uma única causa é a responsável por gerar um único efeito como de a para b na figura 1, pensemos que várias causas colaboram para o surgimento de um determinado efeito. Vejamos a figura 2.

Figura 2: várias causas se agrupam para gerar um efeito.





Passamos então de uma situação de uma única causa para várias causas que são suficientes para um determinado efeito. Desse modo, não procuramos mais um trauma no passado ou o reconhecimento de uma certa má-ação como a responsável pelos problemas que enfrentamos agora. A questão é mais complexa que isso.

Em segundo lugar, ao invés de entender nossa ação presente b como se encaminhando, indefectivelmente, para um certo ponto c, podemos entender que qualquer ação nossa pode gerar por contingência uma série de outras situações.


Figura 3: Um estado presente pode gerar várias possibilidades futuras





Se nós somos o indivíduo no estado presente b, isso significa que recebemos várias influências simultâneas para chegar aqui e temos não um caminho predeterminado a seguir, mas um leque de possibilidades que se abrem à nossa frente. Nosso livre arbítrio consiste em poder escolher entre as várias possibilidades.

Podemos ir ainda mais adiante e passar a um esquema mais complexo em que os pontos se relacionam não de modo linear, mas dentro de uma rede que se conecta com várias outras redes, formando um ambiente tridimensional no qual as causas e efeitos se relacionam subvertendo o tempo.

Figura 4: Karma tridimensional







Por esse modelo de karma, nossos estados presentes se relacionam com estado passados e futuros de modo complexo. Quando alguma coisa abala um único ponto do sistema, todo o sistema se modifica e se reconfigura. Nesse sistema existe uma interdependência entre tudo e entre todos, seja no nível do universo, da humanidade ou dos pensamentos e emoções que carregamos dentro de nós.

Conforme o tempo decorre, não passamos mais de um estado singular a outro, mas apenas mudamos a configuração do sistema. E se pensarmos em termos de relatividade, veremos que todas as configurações que indicariam a passagem do tempo já existem como possibilidade.


Aplicando na prática


É possível já perceber que podemos nos libertar da idéia de karma como prêmio e castigo, do entendimento de mal como algo que exista por si só. Também as idéias de causalidade e linearidade foram confrontadas e a perspectiva de karma como um sistema complexo onde ocorrem múltiplas interações parece fazer mais jus à realidade que vivemos no dia-a-dia, na qual tudo faz parte de um contexto maior.

Outra noção que pudemos rever é a de que o karma é uma lei de "ação e reação". Na verdade, a palavra karma vem do sânscrito e significa "ação". Portanto, o karma é ativo e não reativo. Nossa atividade não gera uma reação no mundo espiritual, nem nós mesmos podemos viver reagindo ao que nos acontece. O karma não deve nos cobrar o passado, mas nos projetar para o futuro.

Por fim, lembrando que a cada momento não somos pré-determinados, mas estamos diante de um leque de possibilidades, podemos agir para tornar realidade uma dessas possibilidades. Considerando que não temos domínio sobre todo os sistema, pode ser que escolhamos uma via e venhamos a causar sofrimento para nós mesmos ou para os outros. Mas tal situação não deve nos causar pânico. Ao contrário, se tivermos consciência do que queremos a longo prazo, qual seja a espiritualidade superior, seremos capazes de transformar todos os estados intermediários pelos quais passarmos, felizes ou infelizes, em caminho para o nosso objetivo final. Se estamos dentro de uma rede tridimensional, são vários os caminhos possíveis desde que saibamos para onde queremos ir.

5 comentários:

  1. A teleologia umbandista em caráter tridimensional, demonstra uma Divindade Superior muito mais "humana", se é que posso dizer assim, haja vista termos a oportunidade de percebermos um bem não atrelado ao existência de um mal, ou seja, o bem e o mal não são processos adjuntos tal qual a luz e a treva, donde a partir da perspectiva de um, só existe o outro.

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  2. Olá, Roger!

    Seu texto permite inúmeras possibilidades (rsrs). Gostaria de comentar a ótica “prêmio e castigo” que foi e é muito utilizada pelas religiões abrâmicas, principalmente pelos Protestantes.
    Dentro do paradigmático livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Weber descreve o Calvinismo, Pietismo, Metodismo e Seitas Batistas. Para este texto, gostaria de comentar o Metodismo que fora caracterizado como de natureza sistemática e metódica de conduta objetivando o certitudo salutis.
    Considerando o karma "prêmio e castigo" , podemos exemplificá-lo perfeitamente pelo metodismo. Através da indução sistemática do ato emocional da conversão, considerado elemento essencial para a Salvação, o adepto tornar-se-ia condicionado à linearidade no encadeamento de causas e efeitos demonstrada na figura 1.
    Por outro lado observamos que as religiões adaptadas a pós-modernidade, como é o caso da Umbanda e sua perspectiva teológica preconizada pela FTU, possuem uma forma de compreensão deste conceito aproximado ao do karma “tridimensional”. Aliás, peço licença para sugerir rebatizá-la de karma multidimensional, pois se considerarmos todas as causas físicas e hiperfísicas, dificilmente conseguiríamos representá-la no R3.

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  3. Concordo com você João. Na realidade, o texto acima é uma transcrição de um debate que tivemos em aula e o modelo que mais se aproximou de nosso entendimento do karma foi o de um fractal. Na visão fractal, temos a possibilidade de um "atrator estranho" que seria o próprio espírito, temos a visão de interdependência, de complexidade e de multidimensionalidade.
    De qualquer modo, sair do modelo linear para um tridimensional já significa bastante e é mais fácil de explicar.

    obrigado por sua participação! gostaria que mais pessoas contribuíssem com suas opiniões.

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  4. Roger

    Seu artigo é muito elucidativo e consistente. Minha primeira reação foi realmente comentar o aspecto da 'multidimensão' ou 'multidimensionalide" do karma, já abordado pelo João e respondido por v. Tenho uma sugestão e uma dúvida. A primeira é de uma abordagem peculiar do tema, sem querer diminuir a discusão. Estou assintindo as video-aulas do Mestre Arahpiaga e uma delas diz respeito aos oraculos de umbanda, feita pelos 'odus'. Como somos defensores do livre arbitrio e como as teorias oraculares nos rementem a um certo determinismo, gostaria de entender melhor o fundionamento destes jogos na umbanda.
    A minha dúvida diz respeito à posição da umbanda em relação a teoria darwinista. Também nas video-aulas observei a concordancia com a teoria da seleção natural, enquanto no seu artigo fica evidente algumas contestações. Além disso, na hierarquia evolutiva das especies, Darwin coloca os indios e possivelmente os negros também como seres inferiores, o que não é, de maneira nenhuma, compatível com a visão umbandista.
    obrigada e aranauam

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  5. Olá Rose,

    Muito interessante seu comentário. Nosso objetivo é aprofundar mesmo as discussões.
    No que diz respeito aos oráculos em geral, devemos nos perguntar quem ou o que é responsável pela "caída" dos búzios ou dos ikin, ou seja, o que determina que uma certa configuraçào apareça no oráculo e responda à pergunta feita.
    A primeira indagação é se a "caída" é ao acaso ou se é condicionada por uma força externa. No caso de uma força externa, seria a mente ou o campo astral do consulente? Seria uma entidade entidade próxima como o Exu que assiste ao Babalawo ou a interferência direta do Orixá, Orunmila-Ifá? Ou talvez a somatória de tudo o que existe no universo, focalizado pelo ângulo pessoal do consulente que se expressa?
    Na minha opinião, é tudo junto e o oráculo não determina o destino, mas oferece uma fotografia da situação do macrocósmico para o microcósmico e dá os detalhes necessários para decidirmos intervir ou não.
    Novamente, a idéia de um fractal, como o mandelbrot, pode ilustrar a questão. O que temos é que a condição local, como a vida de uma pessoa ou uma caída do Ifá, é uma manifestação do todo. O oráculo é um instrumento para enxergar o macro no nível do micro e a sabedoria do sistema acumulada pelos milênios é quem nos ensina como podemos nos movimentar em harmonia com o cosmos.
    Quanto a Darwin, como todo mundo, ele era um homem do seu tempo e por influencias da cultura a que pertencia tentou justificar certos "fatos" por meio da teoria que construía. É lógico que se ele estivesse vivo hoje, não explicaria o "atraso das culturas primitivas" por meio da seleção natural. Até porque atualmente a arqueologia atribui à África o início da humanidade.
    Minha contestação é sobre a idéia de finalidade que muitos associam à seleção natural. Que ela existe, isso parece certo, mas que haja um propósito previamente determinado, essa é outra questão.

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