quinta-feira, 16 de julho de 2009

Por uma ética umbandista

A profusão de valores que convivem de modo caótico na sociedade pós-moderna favorece o dinamismo dialético das relações sociais, mas parece gerar também uma carência de referenciais percebida em várias instâncias da vida cotidiana. A multiplicidade de pensamentos se evidencia no âmbito da cultura, da religião, das ideologias, da sexualidade, das artes e por aí em diante. Se, de um lado, devemos valorizar a riqueza que a diversidade produz ao incentivar olhares diferentes sobre os mesmos temas, ampliando sua compreensão; de outro lado, também devemos ter a consciência de que certas questões não deveriam ser tratadas do mesmo modo e a preservação de princípios absolutos, como a igualdade perante a lei, precisa ser garantida para o próprio exercício da pluralidade. Quando se confundem os campos onde deve existir tolerância com aqueles onde se deve cobrar rigor, o resultado é a perda da ética e o atropelamento das liberdades.
Tomando como exemplo a política, verificamos que sua teia é tão complexa e os jogos de poder tão emaranhados que se tornou senso comum pensar que caso surgisse um político ou governante integralmente honesto, ele(ou ela) deveria ceder às pressões e entrar no esquema para não ser expelido pela máquina. Em nome da "governabilidade" acordos espúrios, alianças nebulosas e omissões convenientes são tolerados pelos eleitores na esperança de que, por vias tortuosas, seus representantes alcancem os propósitos anunciados como promessas durante as campanhas. Mas como diz a sabedoria sertaneja, "se atalho fosse bom, não existiria a volta".

No âmbito público são necessários clareza e transparência. Não podemos assumir a atitude de desilusão, achando que não há como mudar. Tampouco devemos sucumbir ao aparentemente irresistível apelo da banalização que torna o próximo crime apenas mais um, em uma sequência interminável.

Ao contrário, podemos lançar mão daquilo que temos como riqueza, que é o nosso olhar que se forma desde a posição da diversidade e da minoria típicas do movimento umbandista, para fazer emergir o monstro da lagoa e podermos enxergá-lo em sua nudez.

Digo isso porque na passagem das gerações, certos valores que se foram construindo ao longo dos séculos, mas que não existiam absolutamente por si só, são tomados como algo natural, auto-sustentados desde sempre. Os pressupostos da democracia como a melhor forma de governo, ou do espírito capitalista e do liberalismo como sistemas de oportunidades para todos merecem a crítica e a reflexão renovado pelo olhar dos que representam a outra ponta da corda. Não fazemos isso e nos quedamos com a sensação ilusória de indissolubilidade de um sistema que, a exemplo da crise econômica dos subprimes norteamericanos, pode ruir a qualquer momento por si próprio. Se tal sistema é capaz de desmoronar pelas próprias inconsistências internas, que dirá pela ação esclarecedora da espiritualidade munida da razão?

Antes da reforma protestante, vivia-se o ideal ascético de pobreza oriundo do catolicismo que impunha uma visão salvacionista aos seus fiéis para justificar a resignação que deles se esperava, enquanto alguns poucos(aristocratas e a própria Igreja) acumulavam os bens materiais.

Com o surgimento da dissidência cristã promovida inicialmente por Lutero e por Calvino, uma nova mentalidade teria se desenvolvido servindo de suporte, como diria Weber, para o nascimento do espírito do capitalismo. Nessa nova versão do contato com os preceitos crísticos, a graça dos eleitos por Deus se manifestava na riqueza material que serviria para glorificar e melhor servir à obra divina. Os trabalhadores, assim como os patrões, de origem protestante, aderiam a regras de conduta rígida, para alguns também ascética, que serviam de suporte para os laços de confiança social e de garantia na realização de negócios entre irmãos de fé. Segundo Max Weber, o espírito do capitalismo surge mesmo em decorrência da mentalidade nutrida pela fé protestante.

Chegamos então à questão crucial(sem trocadilhos) que nos leva a fustigar o monstro sob as águas. Se o capitalismo teve início há tão pouco tempo, não terá também um fim? Qual seria a nova forma de governo, o novo sistema político e econômico que poderia suplantar o capitalismo e a democracia em suas vantagens, sem os desvios do comunismo? Qual o papel de nós, umbandistas, na elaboração dessa nova ética capaz de reconfigurar os laços sociais? Teremos o poder de, assim como os protestantes supostamente o fizeram, criar um espírito que predisponha ao surgimento de uma nova ordem social?

Lançando mão do distanciamento que nos permite o fato de sermos umbandistas, podemos enxergar na posição dos católicos medievais e dos protestantes modernos o mesmo pressuposto subjacente: o direito à propriedade. Enquanto os católicos afirmavam a propriedade por meio da negação desse direito como oferenda em sacrifício, os protestantes afirmavam também a propriedade como forma de enaltecer as bençãos dos céus.

Pela nossa visão, não se trata nem de afirmar, nem de negar a propriedade(reafirmando-a), mas de perguntar primeiro se ela é possível. Se somos seres espirituais, por definição imateriais, adimensionais e atemporais, como podemos ter posse de algo se nossa própria manifestação corpórea não é constante? Se fomos criados ou se apenas originados de uma mesma essência ou realidade absoluta, não deveríamos combater as desigualdades por terem sido introduzidas artificialmente pela ignorância humana e não pela vontade divina?

Na participação política e social dos umbandistas, devemos fazer mais do que simplesmente nos ajustar às conformações do sistema que já impera para encontrar nosso lugar ao sol. Devemos, sim, desafiar consistentemente as próprias bases mentais cármicas que nos conduziram ao estado atual das coisas e estabelecer as fundações para uma nova forma de vida. Não sabemos ainda qual será, mas temos a certeza que dela seremos protagonistas e não simples coadjuvantes como a história nos tem figurado até hoje.

terça-feira, 24 de março de 2009

Monoteísmo, Politeísmo e Panteísmo na Umbanda

Por Roger Taussig Soares - professor da FTU-Faculdade de Teologia Umbandista


A Umbanda é uma religião brasileira, cujas raízes históricas antecedem ao marco do mito fundador construído em torno de Zélio Fernandino de Morais. De fato, houve um período de transição no qual começaram a surgir elementos típicos da Umbanda nos cultos originais de ascendência africana, ameríndia e européia. As manifestações de espíritos ancestrais por meio da mediunidade de incorporação marcou a passagem dos cultos de nação para aquilo que viria a se compor como o movimento umbandista. Com o surgimento de espíritos de caboclos, pretos-velhos, exus e outros, modificaram-se os valores originais daquelas culturas ao mesmo tempo que se aproximaram as tradições por meio do sincretismo. O resultado foi a constituição de um sistema de crenças brasileiro de caráter peculiar, tanto em termos de práticas litúrgicas como da metafísica ou cosmologia. Uma das singularidades da Umbanda se encontra na forma de enxergar as hierarquias divinas.

De modo geral, há duas formas de espiritualidade: a teista e a não-teista. Embora alguns advoguem o respeito às diferenças alegando que "todas religiões são boas porque acreditam no mesmo Deus", a verdade é que existem grupos não-teistas como os budistas(portanto, sem um deus) e grupos que são essencialmente politeistas ou panteistas e que merecem o mesmo respeito que as religiões de origem abrâmica. Além disso, existem escolas ou seitas dentro das grandes religiões que adotam posturas diferentes no que diz respeito às divindades.
Com o risco de pecar por excesso de generalização, podemos dizer que do cristianismo recebemos uma herança eminentemente monoteísta, dos africanos somos tributários de um caráter politeista e dos indígenas adquirimos uma visão da natureza que pode ser associada a um panteismo.
O monoteismo significa a crença em um único Deus, de caráter supremo e onisciente. Das religiões abrâmicas encontramos no islamismo o melhor exemplo de monoteismo, já que não há adoração a ninguém mais a não ser para Allah. O cristianismo parte já de uma visão plural da divindade, no sentido de que temos o Deus-Filho e o Espírito Santo ao lado de Deus-Pai, constituindo o mistério da Santíssima Trindade. Particularmente, o catolicismo apóstólico romano atribui a espíritos humanos desencarnados uma posição especial com poderes espirituais específicos e uma adoração na forma da plêiade de santos tão próximos das culturas populares. Tais práticas foram descartadas pelas igrejas protestantes.
Os cultos de nação africanos, sejam de origem iorubá quanto banta, expressam um conjunto de deuses criadores e sustentadores da natureza que são denominados Orixás, Voduns ou Inquices, de acordo com a tradição. Alguns entendem que tais cultos sejam verdadeiramente politeistas, enquanto muitos adeptos das religiões africanas afirmam serem monoteistas pelo fato de existir um deus supremo ou melhor dizendo, um deus criador, chamado Olodumare, Olorun ou Zamby Apongy. Todavia, a categoria que melhor expressa a prática dos cultos africanos é a de religiões "henoteistas". Nesse grupo estão as religiões que admitem a existência de várias divindades mas que adotam uma única como objeto de devoção. Essa era justamente a forma como se reverenciava os Orixas nas cidades-estados africanas. Como exemplo, citamos o culto a Xangô em Oyó, o culto a Oxossi em Ketu ou o culto a Yemanjá em Abeokutá.
Dentre as várias teogonias e cosmogonias das nações indígenas brasileiras, tanto do Tronco Tupy quanto do Macro-Jê, veremos muitas maneiras de contato com o Sagrado e chama a atenção a presença dos encantados que revela uma tendência panteista na assimilação dos seres naturais, humanos ou animais, pelo universo do Sagrado.
No surgimento da Umbanda encontramos a fusão harmônica dessas múltiplas perspectivas. O aparecimento de entidades espirituais como mediadoras desse encontro de culturas foi instrumental no processo do sincretismo e favoreceu uma transição no tempo e no espaços para as várias formas de acepção da divinidade. Embora como resultante constatemos que a Umbanda reconhece o Sagrado desde sua origem imanifesta até sua concretização mais palpável na natureza e ainda desvele o caráter sagrado do próprio ser humano, fomos por esse motivo mesmo vítimas de preconceito e segregação. O etnocentrismo próprio das culturas dominantes impôs sobre todas as culturas que não eram monoteistas os rótulos de "religiões primitivas" e de "culturas atrasadas".
Atualmente vemos novamente a Umbanda reavivando as discussões acerca do Sagrado e uma importante síntese foi proposta por F. Rivas Neto, fundador da FTU - Faculdade de Teologia Umbandista, com o título de "A Vertente Una do Sagrado".
De acordo com o ilustre sacerdote umbandista, existiria uma estrutura básica para a teogonia da maioria das religiões que demonstram uma funcionalidade como abaixo descrita:
  1. Divindade Suprema ou Realidade Última
  2. Potestades Divinas (inclui os Orixás, os Arcanjos e demais seres primordiais)
  3. Ancestrais Ilustres (seres humanos divinizados)
  4. Humanidade
  5. Natureza
Como a Umbanda é uma "unidade aberta", nas palavras de F. Rivas Neto, esses conceitos não são definitivos e têm sido continuamente explorados e aprofundados. Enquanto subsistem as noções de sagrado e de profano, a religião umbandista avança na expectativa de ampliar a compreensão do sagrado e unir essa ponte.




Para saber mais, assista às video-aulas de F. Rivas Neto (Mestre Arhapiagha) no site da FTU.

domingo, 22 de março de 2009

Karma e causalidade

Por Roger Taussig Soares (professor da FTU – Faculdade de Teologia Umbandista)

A idéia de "karma" está presente em virtualmente todas as escolas umbandistas e se relaciona com a doutrina da reencarnação e com as regras que definem o processo de evolução espiritual. Como é de se esperar, diante da diversidade intrínseca ao movimento umbandista encontramos também uma variedade de acepções relacionadas à questão do karma. Tentaremos nas próximas linhas discutir essas interpretações, localizar as influências de outras doutrinas e propor, ao final, uma visão mais concernente com as teorias científicas e filosóficas mais atuais.

Karma como prêmio e castigo

Uma das formas mais difundidas de compreensão do karma está ligada à idéia de que teríamos uma história espiritual na qual se registrariam todas as nossas ações. Caso realizemos boas ações, elas reverterão em prêmios, como uma vida próspera e feliz. Por outro lado, quando agimos de modo negativo, precipitamos sobre nós a execução da lei divina que se manifesta em variadas formas de castigos. Muitas religiões, reencarnacionistas ou não, aderem a esse conceito e ainda acrescentam a possibilidade de barganha com o Sagrado na expectativa de atrair seus favores, por meio de promessas, penitências ou pela simples resignação diante do infortúnio. A influência católica é claramente perceptível nessa situação.

É possível esmiuçar essa visão se a levarmos ao ponto do entendimento sobre o que são o Bem e o Mal. Podemos entender esses pequenos prêmios e castigos do karma como instâncias menores, ou seja, minúsculos bens e males, de um grande Bem e um grande Mal, ambos finais, eternos e traduzidos na teologia cristã na forma do Paraíso e do Inferno. Ainda que a teologia cristã não seja totalmente maniqueísta porque não ensina que o Bem e o Mal sejam princípios primordiais, eternos e coexistentes, mas aponte para uma origem do Mal na queda dos anjos, podemos entender que acaba por atribuir um caráter ontológico de realidade do Mal quando ele persiste indefinidamente na forma de danação eterna, após o Juízo Final. Cabe então questionar aos umbandistas se acreditam em um Bem eterno e um Mal igualmente eterno e se o karma acaba por ser a luta entre esses dois opostos que estariam dentro ou fora de nós.

Uma visão diferente é a de que o Mal não existe por si mesmo, mas corresponde a uma falta, uma ausência do Bem. Segundo essa percepção, o mal é a ignorância decorrente do distanciamento da realidade espiritual sempre-existente. Para os sufis, o mal começa com a ilusão da existência de um eu (nafs) e com a percepção distorcida de que a ausência de Deus é possível. Como correção desse distúrbio, o sufismo ensina seus seguidores a encontrarem a Deus na Sua presença e na Sua ausência.

Nota-se que por essa visão o Mal teve origem com o surgimento da ignorância e terá, necessariamente, um fim com a realização da espiritualização plena. Também o mal estaria mais diretamente ligado ou inerente à existência da matéria que se caracteriza pela transitoriedade e pela impermanência. Tudo que é material tem começo e tem fim, como o mal está ligado à perda da consciência espiritual decorrente do mergulho do espírito na matéria, uma vez que recuperarmos a plena consciência da Realidade-Una, ao mesmo tempo transcendente e imanente, será desfeita a ilusão do mal.

Tal visão negativa da existência do Mal se completa com a percepção da relatividade dos conceitos de Bem e de Mal. Várias doutrinas demonstram a relatividade dos juízos de valores que fazemos e que nos utilizamos para conhecer o mundo. Como exemplo, percebemos que só existe o escuro porque existe o claro e vice-versa, por serem conceitos interdependentes. Da mesma maneira, só existe o Bem porque existe Mal. Além disso, a interpretação do que seja bom ou ruim varia entre as pessoas e ainda na mesma pessoa ao longo do tempo.

Diante desse relativismo, podemos concluir que se a evolução aponta para um caminho cada vez mais pleno de espiritualidade e do Bem, em um dado momento o Mal diminuirá tanto que se extinguirá. Quando isso acontecer, também se extinguirá o Bem pois não haverá mais termo de comparação. Essa filosofia está incluída em algumas visões da teleologia umbandista que associam o fim do processo evolutivo ao retorno para o estado da pura consciência espiritual cósmica, ou Reino Virginal. Nessa situação, não será mais necessário o mundo material para a evolução que já terá atingido seu propósito e, portanto, o final da escada evolutiva coincidirá com o fim do universo.

Descartes, Hume, Darwin e karma

O espiritualismo e ocultismo europeus, em linhas gerais, receberam ou importaram várias noções orientais e as adaptaram às suas doutrinas. No processo de tradução verificamos as influências da cultura européia na apropriação de conceitos. Entre elas, destacamos as idéias de linearidade, de causalidade e de evolução.

O pensamento europeu foi bastante determinado pelas luzes do Esclarecimento ou Iluminismo que apostavam na razão como meio para superação dos conflitos humanos e como meta do processo evolutivo. Na expectativa de tornar a espiritualidade mais "científica", observou-se especialmente por parte do espiritismo kardecista, uma valorização do pensamento racionalista cartesiano e das doutrinas de Darwin e Hume como forma de explicar a evolução dos espíritos.

A introjeção desses paradigmas filosóficos-científicos, foi realizada com o intuito de dar maior credibilidade para essas religiões nascentes. Elas seriam respeitáveis porque não seriam apenas religiões, mas também filosofia e ciência. Em contrapartida, aquelas práticas religiosas que davam espaço para a espontaneidade e para a emoção, como as religiões de transe tipicamente africanas e indígenas, seriam consideradas( como o foram no Brasil) formas de baixo espiritismo.

O cartesianismo apresenta-se na doutrina do karma quando se pensa nesse processo utilizando o pensamento de linearidade. Nessa perspectiva, o karma é como um fio ou uma cadeia de eventos que se sucedem uma após o outro, de modo que tudo o que acontece pode ser explicado karmicamente como decorrente de uma ação pregressa nessa vida ou em outras.

Figura 1: Linearidade no encademento de causas e efeitos


Além desse encadeamento de ações tipicamente cartesianas, observa-se ainda uma tendência newtoniana ao se referir à "lei do karma" coma uma lei de "ação e reação" nos moldes da física mecânica de Isaac Newton. Observa-se que a linearidade e o mecanicismo dessa forma de compreensão do karma tendem a submeter o ser humano a um determinismo que se contrapõe ao princípio de livre-arbítrio da espiritualidade. Em conseqüência desse mecanismo tão preciso e determinista somos transformados em presas do destino.

Também a idéia de causalidade de Hume parece estar internalizada nessa doutrina de karma como "a lei de causa e efeito". Os eventos seguem um curso cronológico e é a disposição entre antecedente e consequente que estabelece o nexo causal de necessidade. Notamos o peso desses conceitos na forma como muitos tratam dos problemas experimentados na prática por aqueles que buscam auxílio espiritual. Seguindo essa tendência de causalidade, qualquer infortúnio presente deve ser explicado por uma má-ação do passado. De modo semelhante à "teoria do trauma" de Sigmund Freud, muitos espiritualistas procuram a causa dos problemas presentes em algum evento traumático ou catastrófico do passado, seja nessa ou em outras vidas. As terapias das vidas e vivências passadas adotam essa postura. Assim como os psicanalistas freudianos não procuram mais um único trauma no passado para explicar a neurose presente de seus pacientes, também não devemos encarar o karma desse modo linear.

Por fim, outro cientista enaltecido por determinados círculos espiritualistas foi Charles Darwin cuja teoria da evolução das espécies serviu de inspiração para a interpretação do karma como uma lei evolucionista. Contudo, é necessário perceber que na teoria darwinista não existe um propósito pré-estabelecido para as espécies. Um dinossauro não surgiu no planeta com o intuito de depois dar surgimento a uma galinha. O que acontece é que pela seleção natural, sobrevivem os mais adaptados ao meio e, a não ser que o meio seja manipulado para levar uma espécie a se desenvolver em outra(algo difícil de conceber), não temos aqui a evolução do mesmo modo que aquela entendida pela espiritualidade. Além disso, a sobrevivência do mais adaptado não significa a do melhor, mas simplesmente daquele que está mais em sintonia com o meio. Caso mantivéssemos essa posição, o que esperaríamos do mundo diante de tanta corrupção e do capitalismo desenfreado?

Aprofundando a causalidade

Como a teleologia umbandista certifica a existência de um propósito para o universo e esse propósito ou finalidade está ligado à evolução, não abandonamos a causalidade mas precisamos entender melhor o processo.

Em primeiro lugar, ao invés de pensar que uma única causa é a responsável por gerar um único efeito como de a para b na figura 1, pensemos que várias causas colaboram para o surgimento de um determinado efeito. Vejamos a figura 2.

Figura 2: várias causas se agrupam para gerar um efeito.





Passamos então de uma situação de uma única causa para várias causas que são suficientes para um determinado efeito. Desse modo, não procuramos mais um trauma no passado ou o reconhecimento de uma certa má-ação como a responsável pelos problemas que enfrentamos agora. A questão é mais complexa que isso.

Em segundo lugar, ao invés de entender nossa ação presente b como se encaminhando, indefectivelmente, para um certo ponto c, podemos entender que qualquer ação nossa pode gerar por contingência uma série de outras situações.


Figura 3: Um estado presente pode gerar várias possibilidades futuras





Se nós somos o indivíduo no estado presente b, isso significa que recebemos várias influências simultâneas para chegar aqui e temos não um caminho predeterminado a seguir, mas um leque de possibilidades que se abrem à nossa frente. Nosso livre arbítrio consiste em poder escolher entre as várias possibilidades.

Podemos ir ainda mais adiante e passar a um esquema mais complexo em que os pontos se relacionam não de modo linear, mas dentro de uma rede que se conecta com várias outras redes, formando um ambiente tridimensional no qual as causas e efeitos se relacionam subvertendo o tempo.

Figura 4: Karma tridimensional







Por esse modelo de karma, nossos estados presentes se relacionam com estado passados e futuros de modo complexo. Quando alguma coisa abala um único ponto do sistema, todo o sistema se modifica e se reconfigura. Nesse sistema existe uma interdependência entre tudo e entre todos, seja no nível do universo, da humanidade ou dos pensamentos e emoções que carregamos dentro de nós.

Conforme o tempo decorre, não passamos mais de um estado singular a outro, mas apenas mudamos a configuração do sistema. E se pensarmos em termos de relatividade, veremos que todas as configurações que indicariam a passagem do tempo já existem como possibilidade.


Aplicando na prática


É possível já perceber que podemos nos libertar da idéia de karma como prêmio e castigo, do entendimento de mal como algo que exista por si só. Também as idéias de causalidade e linearidade foram confrontadas e a perspectiva de karma como um sistema complexo onde ocorrem múltiplas interações parece fazer mais jus à realidade que vivemos no dia-a-dia, na qual tudo faz parte de um contexto maior.

Outra noção que pudemos rever é a de que o karma é uma lei de "ação e reação". Na verdade, a palavra karma vem do sânscrito e significa "ação". Portanto, o karma é ativo e não reativo. Nossa atividade não gera uma reação no mundo espiritual, nem nós mesmos podemos viver reagindo ao que nos acontece. O karma não deve nos cobrar o passado, mas nos projetar para o futuro.

Por fim, lembrando que a cada momento não somos pré-determinados, mas estamos diante de um leque de possibilidades, podemos agir para tornar realidade uma dessas possibilidades. Considerando que não temos domínio sobre todo os sistema, pode ser que escolhamos uma via e venhamos a causar sofrimento para nós mesmos ou para os outros. Mas tal situação não deve nos causar pânico. Ao contrário, se tivermos consciência do que queremos a longo prazo, qual seja a espiritualidade superior, seremos capazes de transformar todos os estados intermediários pelos quais passarmos, felizes ou infelizes, em caminho para o nosso objetivo final. Se estamos dentro de uma rede tridimensional, são vários os caminhos possíveis desde que saibamos para onde queremos ir.

sábado, 14 de março de 2009

A Ciência e o TAO



Tao 道 - Caminho da espontaneidade
Na sociedade ocidental, onde tudo é meticulosamente planejado e articulado, onde ficou nossa espontaneidade? Afinal, o que deseja nos dizer essa escola milenar de pensamento, que tanto iluminou o Oriente, e que aos poucos vem angariando adeptos fervorosos no Ocidente, inspirando filósofos e teólogos?
O Tao é identificado como o Absoluto, que por divisão, gerou o Yin e o Yang, os opostos, e ao mesmo tempo complementares, que formam todas as coisas que existem no Universo.
À semelhança do Hinduísmo, e do Budismo, o Taoísmo se interessa pela sabedoria intuitiva, e não pelo conhecimento racional. É um caminho de libertação do mundo, compreendendo e respeitando a profunda sabedoria que guiou a espécie até aqui.
Então, como foi que chegamos a tão intenso desequilibrio com o Tao? Onde foi que o Ocidente se perdeu? Haverá meio de retornar a esse equilibrio?
Somente a união entre Religião, Arte, Filosofia e Ciência num mesmo ideal garantirá o equilibrio cósmico. Portanto, os quatro pilares do conhecimento humano, que separados geraram desarmonia, juntos mostrarão o caminho da harmonia. Esse é o Caminho da Síntese. Comecemos por analisar a Ciência.
Na Medicina tradicional Chinesa, toda doença é sinal de desequilibrio entre o Yin e o Yang. O equilíbrio do corpo é mantido através do fluxo equilibrado do Qi (ch´i) dentro dos meridianos. E os pontos de Acupuntura servem para tratar estes desequilíbrios. Também são utilizadas técnicas de meditação (Tai Chi Chuan, Liang Gong, Chi Kun), e massagem (Tui Na, Do in) como fonte de terapia, e a fitoterapia ainda é o principal recurso de tratamento das doenças mais comuns na China. A Medicina curativa na China é considerada a falência da Medicina Preventiva, uma derrota do médico.
Enfim, Fitoterapia, dietoterapia, meditação e Acupuntura são os principais recursos utilizados pela sociedade chinesa há milhares de anos, e ao contrário do que poderíamos esperar, ela está cada dia mais numerosa e influente.
Então, se tal conhecimento permitiu a sobrevivência e a manutenção desta sociedade, onde o conhecimento Ocidental chegou a bem menos que 70 anos, o que nos pode ensinar esta cultura fabulosa? Por que nos desenvolvemos em pólo tão oposto? Estaríamos aí também confirmando a teoria do Yin e Yang?
Vejamos o que ocorreu conosco...
Até pouco tempo atrás, o conhecimento humano era unificado e integrado à vida prática. Arte, ciência, filosofia e religião eram os pilares de um conhecimento único, confundindo-se, misturando-se, sem cisões, ou limites rígidos e bem definidos. Basta estudarmos algumas culturas antigas, para descobrirmos que índios, hindus e até mesmo os orientais tinham uma visão mais ampla da vida... para eles tudo era interdependente, como uma rede de relações. Até aí, tudo igual.
E então, a partir do Iluminismo, a ciência deixou gradativamente de ser arte, e tb filosofia, e principalmente, religião. O conhecimento tornou-se fragmentado (Descartes).
A Medicina, considerada a Arte de curar, Sacerdócio de Abnegação e Caridade, rompeu bruscamente com a Sabedoria Antiga, dando início a uma era de experimentação científica e tecnológica, relegando ao descaso tudo que já se havia falado e praticado. Olha-se agora para um corpo doente, buscando culpados e soluções rápidas e fáceis para eles. Primeiro, os Miasmas, depois as bactérias, fungos, vírus, agentes externos. Agora, a genética determinista e irremediável... Interação de Genética, Meio e Sistema imunológico formam a teoria de adoecimento mais aceita atualmente. Surge então, a Indústria Farmacêutica, poderosa, milionária, capaz de convencer a todos que para qualquer coisa há uma pílula milagrosa, que curará sem grandes dificuldades e sem exigir grandes sacrifícios. Fácil, cômodo, banal.
A Medicina passou então a cuidar da doença, e não do doente. O médico, que antes representava papel de profundo respeito e confiança, passou a ser visto como frio, calculista, e até cruel... Incapaz de sequer ouvir o paciente, com tempo reduzido ao insuficiente para sua consulta, irritado com o excesso de trabalho, e má remuneração, destruiu voluntaria ou involuntariamente a sagrada relação médico-paciente. E a Arte, a Filosofia, a Religião? A grande maioria dos médicos sequer tem a coragem de abordar tais assuntos, e se vê constrangida ao falar de fé em seus consultórios, como se fosse assunto proibido pelo decreto Placebo.
O que ocorreu?
Esqueceu-se que a Medicina tem aproximadamente 250.000 anos, o mesmo tempo que o Homo sapiens surgiu na Terra. E que a ciência praticada hoje no Ocidente, tem apenas 300 anos...
A Medicina sempre foi praticada, seja por pajés, sacerdotes, feiticeiros, filósofos, curiosos que se dedicavam ao aprendizado... e apesar disso, em toda sua história, ela usufruiu de grande prestígio e respeito. Um mixto de Temor e Admiração acompanhava aquele que se aventurasse no aprendizado desta Arte.
Quais interesses são tão fortes assim, capazes de inverter uma história tão bela e magnífica como a da Medicina? Apenas um. Dinheiro. Ainda as 30 moedas de prata que compraram o solo de sangue...
Tudo parece perdido? Não. É apenas a força portentosa do Tao em ação!
Novamente o Tao se mostra, e brotam por todos os lados novas correntes de pensamento, que começam a invadir os meios universitários, despertando a curiosidade e o interesse de renomados professores... Acupuntura e Homeopatia são apenas os mais importantes e magníficos exemplos de técnicas que anteriormente eram desprezadas, e que agora adquiriram respeito e reconhecimento das entidades médicas e da sociedade. A fitoterapia, embora sempre perseguida pela indústria farmacêutica, insiste em permanecer na cultura de todos os povos, e a suscitar curiosidade e pesquisas da própria indústria... Ainda bem!
Ainda que diferentes, a Medicina Ocidental e a Medicina Oriental mostraram na teoria do Tao, serem pólos de um mesmo caminho. Parecem incompátiveis? Isso é mera ilusão. Próton e elétron, embora com cargas elétricas diferentes, juntas formam um átomo. Um sem o outro são apenas partículas dispersas no Universo do microcosmo.

Jociane Neves Negrão
Médica – Especializanda em Medicina Tradicional Chinesa (Center AO)
Aluna do 2º ano de Teologia Umbandista (FTU)

Cultura Espiritual e Ecologia


A questão ambiental é uma preocupação mundial e envolve problemas como a utilização racional dos recursos esgotáveis, o controle das emissões de poluentes sólidos ou não, o efeito estufa por acúmulo de CO2, a destruição da camada de ozônio, o domínio da biodiversidade, entre outros. Existe uma relação dialética entre a cultura e o uso dos recursos naturais na medida em que nosso modo de vida interfere no meio ambiente e somos, de nossa parte, obrigados a rever nossos padrões de consumo de acordo com o impacto ambiental que produzimos. O que não parece estar evidente para todos é que as raízes espirituais da cultura também influenciam a maneira como convivemos dentro do universo e existe muita diferença de postura perante a natureza de acordo com as tradições religiosas seguidas.
Toda religião fornece uma visão de mundo aos seus adeptos. O fundamento dessa visão de mundo pode ser de ordem transcendente ou imanente, mas sempre influencia nossa postura diante da vida porque determina os valores culturais a serem seguidos e transmitidos de geração em geração. O caminho para a propagação dos valores religiosos e culturais pode ser pelos escritos sagrados, como no cânon judaico-cristão; pode ser por meio da tradição oral, como nas religiões africanas autóctones; ou um meio-termo como no budismo tibetano ou na tradição SriVidya do tantrismo shakta indiano.
O versículo 26 do primeiro capítulo do Gênesis representa a mentalidade tipicamente ocidental da cultura judaico-cristã: "E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra."
Nota-se que essa visão de mundo coloca o ser humano no centro da Criação e submete a natureza aos seus pés para servi-lo; essa percepção presente nas religiões abrâmicas deu origem aos princípios de toda cultura ocidental. A postura da ciência contemporânea que pretende dominar a natureza e modifica-la para atender aos interesses humanos parece ser tributária dessa cosmovisão antropocêntrica.
Esse talvez seja o principal problema que deveríamos enfrentar para responder às questões ambientais. Como modificar a mentalidade ocidental que ainda acredita que a natureza está aqui simplesmente para servir à raça humana?
A Hipótese de Gaia, lançada pelo britânico James Lovelock em 1969, procura modificar essa visão ocidental e entende que a Terra é um ser vivo que tem uma diversidade de habitantes de todos os reinos, assim como nosso organismo é composto por um aglutinado de individualidades celulares agindo em concerto. Infelizmente, o trabalho dos ambientalistas, naturalistas, sociedades protetoras de animais, ONG's envolvidas com a biodiversidade surtem efeito modestos e lentos.
Por outro lado, existem tradições espirituais que não deixam de compreender toda transcendência do Sagrado e que ainda reconhecem as manifestações dos princípios universais no aqui e agora, propiciando uma relação mais salutar e harmônica com a natureza.
Um exemplo paradigmático dessa postura é encontrada no Taoísmo, religião chinesa, que identifica o Tao (a essência primeira inominada) no Vazio (Wu Ji), na dualidade do Yin e Yang (Tai-Chi) e em toda a natureza (As Dez Mil Coisas). Com essa visão de mundo, se quiser realizar o Sagrado, o adepto taoísta deve estar em harmonia plena com o movimento dos Cinco Elementos e dos Oito Princípios (Pa-Kua).
A consequencia dessa atitude é demonstrada perfeitamente por Allan Watts em "O Tao da Filosofia". Se um indivíduo de mentalidade tipicamente ocidental, de ascendência judaico-cristã, deseja construir uma casa em uma montanha, o que ele faz é escolher o lugar onde quer sua construção e cortar a montanha para torná-la plana de modo a receber seu novo lar. Já um adepto taoísta assume uma atitude de respeito e "pergunta" à montanha que tipo de edificação gostaria que fosse construída sobre ela. Para os taoístas, não existe um "eu" destacado do universo, mas nós estamos para o universo assim como as ondas estão para o mar.
Demos aqui dois exemplos diametralmente opostos que generalizam posições diferentes em relação ao mundo e é claro que os ocidentais têm procurado rever suas posições, do mesmo modo que nem todos os orientais seguem os princípios de suas religiões milenares.
Nosso intuito é alertar para a influência que a tradição espiritual pode ter no modo como lidamos com as coisas aparentemente profanas, que não parecem ter nada a ver com o espiritual.
A Umbanda recebe uma variedade de heranças, tanto da tradição judaico-cristã, como de tradições mais próximas da natureza representadas pelos indígenas brasileiros e pelas nações africanas; além de influências de todo o oriente.
Qual a postura que os umbandistas querem propagar para sua descendência é algo que devemos construir desde já.

sexta-feira, 13 de março de 2009

A Teologia Umbandista contribue para o entendimento do Sagrado

As diversas tradições religiosas do planeta não deveriam ser vistas como os resquícios de uma época na qual predominava a consciência mítica e que foi superada pela ciência e pela razão. Ao contrário, o acervo representado pela cultura espiritual do planeta não aponta para um passado primitivo, mas para o futuro que desejamos de igualdade de direitos e de exercício de convivência pacífica. Portanto, o aprofundamento teórico e prático nas questões de cunho espiritual representa uma necessidade premente no momento em que enfrentamos os conflitos da sociedade pós-moderna e da era da globalização.
O planeta passa por dilemas nas esferas econômica, ambiental, social e política e a espiritualidade pode ser o paradigma que sustente as transformações requeridas para voltarmos ao equilíbrio. Por mais que vivamos o progresso tecnológico e científico, não temos sido capazes de universalizar esses bens a toda coletividade planetária. Precisamos reconhecer que os esforços das ciências e da filosofia não têm culminado na construção da justiça social. Uma das causas desse insucesso é a redução da vida ao materialismo puro da visão mecanista.
Por outro lado, aqueles que dedicam suas vidas ao desenvolvimento e propagação dos valores espirituais devem também compreender que não podemos continuar ensinando uma religiosidade desconectada do mundo real e em contradição com os achados da ciência e das novas áreas do saber humano. Devemos sim encontrar as formas de espiritualidade que sejam eficazes para conduzir o ser humano contemporâneo ao encontro do Sagrado. Podemos nos adaptar ao nosso tempo sem precisar fazer concessões da fé.
Outro aspecto a se levantar é se o surgimento de uma sociedade globalizada pode ser motivo para o desaparecimento das religiões que se encontram fundadas em valores culturais situados no tempo e no espaço. Se, de certo modo, temos que o desenraizamento típico da pós-modernidade provoca a perda de valores tradicionais e até mesmo compromete a identidade e o sentimento de pertencimento às culturas locais; encontramos aí também a possibilidade de construir uma espiritualidade mais ampla, abrangente e universalista. Basta estarmos dispostos a encarar a espiritualidade como um fenômeno maior e mais profundos que as religiões.
A proposta do Blog da Faculdade de Teologia Umbandista é facilitar os diálogos entre ciência, filosofia, religião e arte. Também espera discutir a fundo as várias tradições religiosas do planeta na expectativa de desfazer os preconceitos e fertilizar o campo das idéias com os ensinamentos dos grandes espíritos que já passaram pelo planeta.
Por fim, esperamos que ampliando a compreensão sobre todas as religiões, avancemos no entendimento do Sagrado em si e possamos enriquecer a cultura dos umbandistas e de todas aqueles que buscam a paz e a convergência.