Tomando como exemplo a política, verificamos que sua teia é tão complexa e os jogos de poder tão emaranhados que se tornou senso comum pensar que caso surgisse um político ou governante integralmente honesto, ele(ou ela) deveria ceder às pressões e entrar no esquema para não ser expelido pela máquina. Em nome da "governabilidade" acordos espúrios, alianças nebulosas e omissões convenientes são tolerados pelos eleitores na esperança de que, por vias tortuosas, seus representantes alcancem os propósitos anunciados como promessas durante as campanhas. Mas como diz a sabedoria sertaneja, "se atalho fosse bom, não existiria a volta".
No âmbito público são necessários clareza e transparência. Não podemos assumir a atitude de desilusão, achando que não há como mudar. Tampouco devemos sucumbir ao aparentemente irresistível apelo da banalização que torna o próximo crime apenas mais um, em uma sequência interminável.
Ao contrário, podemos lançar mão daquilo que temos como riqueza, que é o nosso olhar que se forma desde a posição da diversidade e da minoria típicas do movimento umbandista, para fazer emergir o monstro da lagoa e podermos enxergá-lo em sua nudez.
Digo isso porque na passagem das gerações, certos valores que se foram construindo ao longo dos séculos, mas que não existiam absolutamente por si só, são tomados como algo natural, auto-sustentados desde sempre. Os pressupostos da democracia como a melhor forma de governo, ou do espírito capitalista e do liberalismo como sistemas de oportunidades para todos merecem a crítica e a reflexão renovado pelo olhar dos que representam a outra ponta da corda. Não fazemos isso e nos quedamos com a sensação ilusória de indissolubilidade de um sistema que, a exemplo da crise econômica dos subprimes norteamericanos, pode ruir a qualquer momento por si próprio. Se tal sistema é capaz de desmoronar pelas próprias inconsistências internas, que dirá pela ação esclarecedora da espiritualidade munida da razão?
Antes da reforma protestante, vivia-se o ideal ascético de pobreza oriundo do catolicismo que impunha uma visão salvacionista aos seus fiéis para justificar a resignação que deles se esperava, enquanto alguns poucos(aristocratas e a própria Igreja) acumulavam os bens materiais.
Com o surgimento da dissidência cristã promovida inicialmente por Lutero e por Calvino, uma nova mentalidade teria se desenvolvido servindo de suporte, como diria Weber, para o nascimento do espírito do capitalismo. Nessa nova versão do contato com os preceitos crísticos, a graça dos eleitos por Deus se manifestava na riqueza material que serviria para glorificar e melhor servir à obra divina. Os trabalhadores, assim como os patrões, de origem protestante, aderiam a regras de conduta rígida, para alguns também ascética, que serviam de suporte para os laços de confiança social e de garantia na realização de negócios entre irmãos de fé. Segundo Max Weber, o espírito do capitalismo surge mesmo em decorrência da mentalidade nutrida pela fé protestante.
Chegamos então à questão crucial(sem trocadilhos) que nos leva a fustigar o monstro sob as águas. Se o capitalismo teve início há tão pouco tempo, não terá também um fim? Qual seria a nova forma de governo, o novo sistema político e econômico que poderia suplantar o capitalismo e a democracia em suas vantagens, sem os desvios do comunismo? Qual o papel de nós, umbandistas, na elaboração dessa nova ética capaz de reconfigurar os laços sociais? Teremos o poder de, assim como os protestantes supostamente o fizeram, criar um espírito que predisponha ao surgimento de uma nova ordem social?
Lançando mão do distanciamento que nos permite o fato de sermos umbandistas, podemos enxergar na posição dos católicos medievais e dos protestantes modernos o mesmo pressuposto subjacente: o direito à propriedade. Enquanto os católicos afirmavam a propriedade por meio da negação desse direito como oferenda em sacrifício, os protestantes afirmavam também a propriedade como forma de enaltecer as bençãos dos céus.
Pela nossa visão, não se trata nem de afirmar, nem de negar a propriedade(reafirmando-a), mas de perguntar primeiro se ela é possível. Se somos seres espirituais, por definição imateriais, adimensionais e atemporais, como podemos ter posse de algo se nossa própria manifestação corpórea não é constante? Se fomos criados ou se apenas originados de uma mesma essência ou realidade absoluta, não deveríamos combater as desigualdades por terem sido introduzidas artificialmente pela ignorância humana e não pela vontade divina?
Na participação política e social dos umbandistas, devemos fazer mais do que simplesmente nos ajustar às conformações do sistema que já impera para encontrar nosso lugar ao sol. Devemos, sim, desafiar consistentemente as próprias bases mentais cármicas que nos conduziram ao estado atual das coisas e estabelecer as fundações para uma nova forma de vida. Não sabemos ainda qual será, mas temos a certeza que dela seremos protagonistas e não simples coadjuvantes como a história nos tem figurado até hoje.