terça-feira, 24 de março de 2009

Monoteísmo, Politeísmo e Panteísmo na Umbanda

Por Roger Taussig Soares - professor da FTU-Faculdade de Teologia Umbandista


A Umbanda é uma religião brasileira, cujas raízes históricas antecedem ao marco do mito fundador construído em torno de Zélio Fernandino de Morais. De fato, houve um período de transição no qual começaram a surgir elementos típicos da Umbanda nos cultos originais de ascendência africana, ameríndia e européia. As manifestações de espíritos ancestrais por meio da mediunidade de incorporação marcou a passagem dos cultos de nação para aquilo que viria a se compor como o movimento umbandista. Com o surgimento de espíritos de caboclos, pretos-velhos, exus e outros, modificaram-se os valores originais daquelas culturas ao mesmo tempo que se aproximaram as tradições por meio do sincretismo. O resultado foi a constituição de um sistema de crenças brasileiro de caráter peculiar, tanto em termos de práticas litúrgicas como da metafísica ou cosmologia. Uma das singularidades da Umbanda se encontra na forma de enxergar as hierarquias divinas.

De modo geral, há duas formas de espiritualidade: a teista e a não-teista. Embora alguns advoguem o respeito às diferenças alegando que "todas religiões são boas porque acreditam no mesmo Deus", a verdade é que existem grupos não-teistas como os budistas(portanto, sem um deus) e grupos que são essencialmente politeistas ou panteistas e que merecem o mesmo respeito que as religiões de origem abrâmica. Além disso, existem escolas ou seitas dentro das grandes religiões que adotam posturas diferentes no que diz respeito às divindades.
Com o risco de pecar por excesso de generalização, podemos dizer que do cristianismo recebemos uma herança eminentemente monoteísta, dos africanos somos tributários de um caráter politeista e dos indígenas adquirimos uma visão da natureza que pode ser associada a um panteismo.
O monoteismo significa a crença em um único Deus, de caráter supremo e onisciente. Das religiões abrâmicas encontramos no islamismo o melhor exemplo de monoteismo, já que não há adoração a ninguém mais a não ser para Allah. O cristianismo parte já de uma visão plural da divindade, no sentido de que temos o Deus-Filho e o Espírito Santo ao lado de Deus-Pai, constituindo o mistério da Santíssima Trindade. Particularmente, o catolicismo apóstólico romano atribui a espíritos humanos desencarnados uma posição especial com poderes espirituais específicos e uma adoração na forma da plêiade de santos tão próximos das culturas populares. Tais práticas foram descartadas pelas igrejas protestantes.
Os cultos de nação africanos, sejam de origem iorubá quanto banta, expressam um conjunto de deuses criadores e sustentadores da natureza que são denominados Orixás, Voduns ou Inquices, de acordo com a tradição. Alguns entendem que tais cultos sejam verdadeiramente politeistas, enquanto muitos adeptos das religiões africanas afirmam serem monoteistas pelo fato de existir um deus supremo ou melhor dizendo, um deus criador, chamado Olodumare, Olorun ou Zamby Apongy. Todavia, a categoria que melhor expressa a prática dos cultos africanos é a de religiões "henoteistas". Nesse grupo estão as religiões que admitem a existência de várias divindades mas que adotam uma única como objeto de devoção. Essa era justamente a forma como se reverenciava os Orixas nas cidades-estados africanas. Como exemplo, citamos o culto a Xangô em Oyó, o culto a Oxossi em Ketu ou o culto a Yemanjá em Abeokutá.
Dentre as várias teogonias e cosmogonias das nações indígenas brasileiras, tanto do Tronco Tupy quanto do Macro-Jê, veremos muitas maneiras de contato com o Sagrado e chama a atenção a presença dos encantados que revela uma tendência panteista na assimilação dos seres naturais, humanos ou animais, pelo universo do Sagrado.
No surgimento da Umbanda encontramos a fusão harmônica dessas múltiplas perspectivas. O aparecimento de entidades espirituais como mediadoras desse encontro de culturas foi instrumental no processo do sincretismo e favoreceu uma transição no tempo e no espaços para as várias formas de acepção da divinidade. Embora como resultante constatemos que a Umbanda reconhece o Sagrado desde sua origem imanifesta até sua concretização mais palpável na natureza e ainda desvele o caráter sagrado do próprio ser humano, fomos por esse motivo mesmo vítimas de preconceito e segregação. O etnocentrismo próprio das culturas dominantes impôs sobre todas as culturas que não eram monoteistas os rótulos de "religiões primitivas" e de "culturas atrasadas".
Atualmente vemos novamente a Umbanda reavivando as discussões acerca do Sagrado e uma importante síntese foi proposta por F. Rivas Neto, fundador da FTU - Faculdade de Teologia Umbandista, com o título de "A Vertente Una do Sagrado".
De acordo com o ilustre sacerdote umbandista, existiria uma estrutura básica para a teogonia da maioria das religiões que demonstram uma funcionalidade como abaixo descrita:
  1. Divindade Suprema ou Realidade Última
  2. Potestades Divinas (inclui os Orixás, os Arcanjos e demais seres primordiais)
  3. Ancestrais Ilustres (seres humanos divinizados)
  4. Humanidade
  5. Natureza
Como a Umbanda é uma "unidade aberta", nas palavras de F. Rivas Neto, esses conceitos não são definitivos e têm sido continuamente explorados e aprofundados. Enquanto subsistem as noções de sagrado e de profano, a religião umbandista avança na expectativa de ampliar a compreensão do sagrado e unir essa ponte.




Para saber mais, assista às video-aulas de F. Rivas Neto (Mestre Arhapiagha) no site da FTU.

4 comentários:

  1. Olá Roger,

    Mais um texto que faz pensar sobre a proposta deste blog da FTU: Religiosidade e Espiritualidade.
    A Umbanda consegue transitar nos três aspectos abordados no texto. Certamente exercitamos o monoteísmo quando cremos em um Deus ou Suprema Consciência Una. Bebemos do panteísmo quando sentimos o Sagrado nos sítios naturais, legítima hierofania.
    Quanto ao panteísmo, confesso que desconhecia a expressão “henoteísta”. Mas pelas explicações oferecidas no artigo e uma rápida pesquisa sobre o assunto, tenho que o fato de termos um Orixá de cabeça exemplifique exatamente esta influência. Ou seja, apesar de reconhecermos a importância de todas as Potestades Divinas que compõe o nosso panteão, temos um devoção peculiar por Aquele que representa o Senhor do nosso Ori.
    A estrutura básica construída pelo autor F. Rivas Neto e devidamente transcrita no blog demonstra como a FTU possui uma Solução de Síntese que consegue oscilar do Sincretismo à Convergência. Aliás, esta expressão é exatamente o tema central do II Congresso de Umbanda do Século XXI que será promovido pela FTU em novembro. Estamos ansiosos por este evento e seus positivos desdobramentos.

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  2. Aranauam, Araobatan!
    Sempre me pareceu que o debate conflituoso (alimentado por uma flagrante etnofobia) entre monoteísmo, politeísmo e panteísmo não resiste a uma análise mais profunda.
    Digo isso porque, segundo penso, o fato de haver uma Hierarquia constituída pela Divindade Suprema, não nega a existência desta última; pelo contrário, afirma-a com todo vigor e de modo bastante evidente, afinal de contas a Hierarquia foi justamente constituída pela Divindade-Una.
    Por extensão, num outro plano, fica evidente também que o resultado do processo "criativo" deflagrafo pela Suprema Consciência-Una, através de seus prepostos, só pode ser sagrado também, de modo que o mundo natural é, por sua própria natureza, sagrado. Isso me parece ser assim pelo simples fato de que tudo o que existe no mundo natural foi constituído justamente pelo Poder Divino.
    Portanto, segundo um critério puramente lógico, o embate entre monoteísmo, politeísmo e panteísmo é rigorosamente impossível, desde que os conceitos sejam interpretados de modo adequado. E essa impossibilidade decorre do fato de que, nos três sistemas, a única diferença é uma diferença de ênfase: (a) no monoteísmo, enfatiza-se o aspecto sagrado (aliás, sagrado por excelência) da Divindade Una; (b) no politeísmo, sem negar o Deus Supremo, o foco está nas Hierarquias Constituídas, mais próximas de nossa condição atual, o que justifica a devoção para elas; e (c) no panteísmo, sem prejuízo da existência de "um Deus" e de "Deuses menores", o foco está na sacralidade daquilo que foi feito por Eles - natura.
    Assim, levando-se em conta o referido critério lógico, percebe-se que, por estarem em diferentes planos ontológicos, os três sistemas não se excluem mutuamente, mas, ao contrário, reforçam-se e coexistem na vivência religiosa, que é complexa demais para reduções tão arbitrárias e tão carentes de respaldo lógico e teológico...
    Enfim, gostaria de saber se meu raciocínio está no caminho certo. Espero suas sempre inteligentes colocações, Araobatan!
    Aranauam e até a próxima.
    Thomé

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  3. Aliás, complementando o comentário anterior, é importante observar que o conceito de "Vertente Una do Sagrado", alcunhado por Pai Rivas, resolve em definitivo a questão: embora a Divindade Suprema, as Potestades Espirituais, a Humanidade e a Natureza estejam em estatutos ontológicos distintos, todos integram a Realidade (que é sagrada em si e por si mesma), de modo que qualquer tentativa de separação entre um e outro desses quatro fatores não passa de uma imposição artificial, ilógica e arbitrária).
    Portanto, o conflito (nunca realmente existente) desaparece e a contemplação do Todo-Uno se mostra como a via mais adequada para uma busca honesta pela Verdade e pelo Sagrado, que são uma e a mesma coisa.
    Aranauam,
    Thomé

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  4. Maravilhoso Araobatan, é bom mostrar mesmo, que
    UMBANDA, não é só por uma roupa branca (em muitos lugares, coloridas) incorporar uma entidade, abrir o rito, fechar o rito, etc.... a UMBANDA é muito, mas muitissimo MAIS que somente isso! Como seria bom, se o povo que tanto censura o umbandista, procurasse, antes, conhecer um pouquinho só, da nossa Filosofia de Vida. Aranauan!!!

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